quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quando não é tempo de sonhar



Em uma manhã como todas as outras na cidade, manhã escura em que se podia sentir o gosto de enxofre na garganta misturado com o sabor do suor do corpo de alguém desconhecido que já havia deixado o quarto, manhã que cheirava a óleo diesel, fuligem e sexo, os excessos e vícios sociais enfim chegaram ao extremo.
Uma mulher seminua gritava na rua:

A sociedade é falocrata,
O caralho é o maior dos tótens
[mesmo quando pequeno].

E quantos pequenos eu vi brincado com seus caralhos.
E quantos pequenos eu vi com o caralho entre os dedos, lábios...

Quantos caralhos passaram por entre minhas pernas tortas?
Mancas, secas...

E desses tantos quantos me fizeram gozar, qual me fez dor de prazer, quais me entortaram a face e quais me humilharam de todo?


Pessoas eram atacadas. Isso era normal nos bairros afastados, no entanto a violência gratuita chegara aos bairros nobres. Não que fosse esse o objetivo, os ataques eram desprovidos de qualquer senso de justiça. A lógica era a da destruição.
Na noite do mesmo dia os ataques deixaram as ruas. Um silêncio religioso imperava. A mulher que antes gritava estava jogada na sarjeta, agora nua os cães lambiam-lhe os pés. Parte do seio esquerdo já havia sido devorada pelos ratos, mas ela ainda respirava. Alguns podiam jurar que sussurrava as frases da manhã.
Um homem maltrapilho recitava um poema, talvez fora um poeta famoso.

As carcaças dos cães,
Nos cantos da avenida,
 Apodrecem aos poucos.
Parece que são consumidos pelo asfalto.
Aos poucos se fundem ao concreto.
Assim como tudo na cidade.

Essa foi a última voz que se ouviu naquela noite. As primeiras horas do dia seguinte foram exatamente como o dia anterior, o enxofre entrava nas narinas com mais força. A fábrica não parava em hipótese alguma. Os trabalhadores subiam as ruas com o almoço em punho, desviando dos corpos e pensando apenas no dia de trabalho. Os homens chegavam logo depois, mas não tinham que desviar dos corpos, seus carros passavam por cima de crânios, pés, pernas, fêmures, bocas, mãos, mães e filhos. Portanto o dia correu bem, apesar do incômodo que os corpos traziam.
Ao findar da tarde todos deixaram a fábrica. No caminho de volta alguns trabalhadores recolhiam os corpos menos estragados. Há muito que não comiam carne, e aquela era uma ótima oportunidade.

A noite então se iniciara, a janta fora servida e devido a isso um cheiro podre tomou conta da cidade. No dia seguinte haveria sacos pretos com restos na porta de cada casa.
O resto da semana foi como sempre fora, nada demais aconteceu, o horror do primeiro dia foi lentamente apagado pelo prazer que despertou a carne, ainda que podre, ao desmanchar na boca das famílias.
Dada essa semana de recordações prazerosas, novos ataques aconteceriam. Mas não nas ruas. A rua era um espaço muito impessoal.
A primeira propriedade a ser invadida foi a casa de número 47 da rua Esperança. Lá habitava uma família de classe média. A casa era alugada e o pai da família mudara-se há pouco tempo devido proposta de emprego na seção de logística da fábrica. Os ataques não eram diferentes para cada família, era sempre o mesmo método. Não importando a classe, ou qualquer diferença.
O grupo invadia a casa apresentando-se:

- Boas noites, perdoem a intromissão. Confesso que sentimo-nos deveras acabrunhados pelo que nos traz aqui em sua bela residência nesta noite. Quereria eu, que as circunstâncias fossem outras, no entanto a conjuntura dura da realidade de nossa pobre cidade, e por que não dizer mundo, ainda que nunca tenha saído das fronteiras desse lugar ignóbil, nos força a adentrar assim desrespeitosamente em vosso lar. Acredito ser o senhor o pai da família, em termos biológico, o macho alfa. Não? Bela família a sua. - dirigindo-se para a garota ao lado do suposto pai – Mas que garotinha linda, que olhos expressivos hã?
Bem meus anfitriões feitas as devidas apresentações acredito que agora é a hora de conhecermo-nos com mais profundidade, não acham? Faremos um pequeno jogo, quem quer me ajudar? Alguém, alguém? Poxa, mas que pena. – Voltando-se para o grupo que adentrara na casa com ele diz sarcasticamente – São pouco participativos. Pois bem, devo então escolher o meu ajudante inicial.

-Pegue a mulher!

Começava então o jogo. A mulher era despida lentamente. E cada peça tinha um sabor diferente. O horror excitava o grupo. E então o estupro.
Uma,
Duas,
Três,
Quatro vezes.
Quantas vezes o grupo quisesse. E como espectador de todo esse grande circo, estava a família.
Engraçado é que geralmente o marido primeiro se sentia humilhado. Claro, sua propriedade havia sido possuída sem seu consentimento.
O suposto jogo não parava por ai. Depois que a mulher havia sido estuprada de todas as formas possíveis era a vez do pai. Os invasores faziam o mesmo com o pai. Exatamente a mesma coisa. Nessa hora houve maridos que disseram para os homens que voltassem a estuprar a mulher, digo houve maridos que disseram, porque todos pensaram. Sem exceção. Enquanto o estupravam na frente dos filhos e esposa ele consentia, agora, que a estuprada fosse a esposa. Era natural que a mulher fosse dominada, mas não ele. Não quem domina. O amor que sentia por ela era menor que a vergonha, menor que sentimento de posse, menor que a humilhante situação. A essa altura a mulher já estava totalmente absorta em si. O corpo destorcido e a mente destorcida não permitiam que ela sequer protegesse o filho que nesse momento passava a mera condição de cria. A criança era apenas um ser humano burro.
Depois do pai era o filho, assim como na santíssima trindade o pai era sucedido pelo filho, no entanto o espírito santo não possuía lugar nesse santuário. A igreja já havia sido invadida pelo grupo. Padres e freiras já haviam perdido a fé. O cálice de vinho havia tombado sobre o padre e a mancha vermelha sobre seu manto era sangue. Sangue de cristo. O corpo de cristo fora saboreado como é saboreado o corpo de uma mulher com o mero intuito de gozar o mais rápido possível.
 Toda mulher, todo homem e criança era agora Madalena.

A parte predileta do grupo era forçar o sexo entre mãe e filho, pai e mãe e pai e filho. A festa acontecia até que o primeiro raio de sol despontasse na janela da casa. Ao final, ninguém possuía forças para lutar contra a violência, no máximo escondiam os corpos com as mão, corpos que haviam perdido toda a graça que possuíam. Não existia mais beleza no corpo da mulher. Era apenas ancas e seios magros e miúdos. Ou então grandes camadas de banha, pernas gordas, e pêlos. Os velhos eram apenas pele, veias, boca sem dentes e unhas sujas. Os homens, incrivelmente, continuavam a ser carne, pelos e pênis. Muitas vezes todos se resumiam em corpos, urina e fezes.

 Ninguém sentia mais vergonha, ninguém sentia mais medo, simplesmente aceitavam.
A mulher sempre aceitou, para ela era até natural. A incomodava mais ver o marido daquela maneira. A mulher também era homem.
Mais do que o corpo, seus valores haviam sido destruídos. No entanto isso fora antes da defloração do seu corpo. Bem antes daquele momento, e só agora percebia. Isso aconteceu quando se submeteu às ordens do pai, quando transou sem querer, quando aceitou se casar. Agora, de repente, via o marido como igual, sua superioridade masculina por um instante desaparecera. Vendo-o nu, humilhado no canto do sofá, e impotente como ela fora grande parte da vida. E por isso, por um instante, ainda que infinitesimal, sorriu.
A cena final era a luz rompendo a noite, quebrando as janelas, chocando-se aos lustres e se espalhando pelos corpos.
Os ataques aconteceram todas as noites de um dos anos passados, 365 noites de violência, e nesse período de tempo, todos, sem exceção, foram vítimas. Todos tiveram seu orgulho e valores destruídos. A não ser pelas prostitutas. Sua humanidade já havia sido minimizada pelos olhares alheios. Não que não fossem humanas, mas já haviam, há muito, aprendido a conviver com os animais. A prostituta possuía o corpo fechado.
Com o tempo as pessoas deixaram de sair de casa, não queriam ser vítimas dos olhares, ainda que todos tivessem passado pelas mesmas coisas, alguém podia imaginar coisas que não aconteceram, ou pior, que realmente aconteceram. Curiosamente as crianças continuaram a sair normalmente. Apesar de todo o mal estar que sentiam tinham uma vantagem sobre todos: fantasiavam a própria historia recriavam sua realidade através do sonho e assim transformavam sua realidade de concreto, asfalto e aço.

 Enquanto que para o resto das pessoas isolarem-se em casa já não era suficiente, as prostitutas e crianças se sentiam livres pela primeira vez. A um não era necessário assentir, e a outro a negativa não era mais a primeira resposta. Eles podiam finalmente.
A prostituta não era homem e nem madalena, era criança. E a criança era puta, porque ambos eram livres.

Quanto aos outros, começaram a se isolar em seus quartos. Depois deixaram de sair de suas camas. Daí passaram a ocupar pequenos espaços dentro de suas mentes, até que se ausentaram de si.
  
A pesar de tudo algumas famílias tentaram reconstituir a estrutura do passado.

- Onde você esteve?
- Estava na igreja.
- Você vive na igreja. Não fica em casa.
- Cadê o garoto?
- Que garoto?
- Seu filho!
- Ah sim, não sei. Faz tempo que não o vejo. Estava por ai.
- Ok.

- O que você quer?
- A gente nunca mais ficou juntos. Porque não subimos?
- Não! Sai!
- Que é? Gostou tanto da noite da invasão que agora não quer trepar comigo? Fala pra mim. Fala... O que você sentiu? Gozou quantas vezes? De qual deles você gostou mais? Aposto que do negro de barba.
  
-Você está louco!
-Aposto que você, não estava na igreja porra nenhuma. Ou melhor, estava sim. Trepando com o padre. Porque mais você iria à igreja? E agora? Porque você não me conta, como é chupar um pau santo?  Não! Melhor! Como é ser preenchida pela palavra de Deus? Quando ele te fode ele reza a ave Maria ou o pai nosso? Qual o gosto do padre... me fala anda...
-Vêm cá. Vem cá! Porque a gente não convida o padre para almoçar um domingo qualquer? Ai, enquanto eu sirvo o corpo de cristo para o nosso filho, você serve o seu corpo para o padre.

            Então num ato descompassado e mecânico o homem abre a braguilha da calça, enquanto sobe a saia da mulher, para deixá-la imóvel coloca o cinto ao redor de seu pescoço. Essa imobilidade permite que mais uma vez a mulher seja objeto. Enquanto o homem exerce, quase que por direito, sua masculinidade violenta reza o pai nosso em voz alta:

-Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso pênis venha a nos o vosso reino...

-Pai?

-Sobe para o seu quarto garoto, a comida está quase pronta. Vamos ter um almoço em família hoje.