quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Eron Nicodemus

    

     Eron Nicodemus era o nome do Homem. Do Homem filho de outro homem. A repetição do vocábulo homem demonstra a desimportância do Homem em questão, e de, por que não assim dizer, de todos. Mas o fato é que o Homem se chamava Eron Nicodemu.
    Eron era grande, nascera grande. De tão grande tiveram que partir sua mãe em duas metades. Como a flor que nasce rompe a semente Eron rompeu no semblante não o choro do suspiro do primeiro sopro, mas sim um silêncio e a solidão da criança que nasce sozinha e que por algum motivo entende que a vida é desgraçada. Mas Eron não era flor, Eron era cactos. Era feio. Eron nasceu feio, feio velou sua mãe e a enterrou. Nenhum pensamento humano lhe ocorreu no instante do nascimento, nenhum gesto humano, sequer quis encher de ar os pulmões. Relutante deu o primeiro suspiro. Logo de cara tentou suicídio e, aos poucos, foi demonizando-se cada dia mais. E a cada dia afastava-se da pouca humanidade que possuía até que matou o humano de si fazendo restar apenas o demônio de todos. Eron era a demonização de toda a raça. Demonização de toda raça sim, mas vivíamos, naquela altura em tempos tão adversos, de uma simplicidade tão complicada que tudo que se podia pensar ao olhar para Eron era como era grande, bastardo e feio. Também era só.
    Eron não fazia questão de nada. Tampouco as pessoas lhe interessavam. Passava horas parado olhando para um canto qualquer sem sequer desejar a própria morte. Eron vivia como quem vive a esmo. O que lhe davam era o que teria e não almejava coisa maior. Não acreditava em deus porque - "em deus não se confia" dizia ele. Não tinha medo da morte, não tinha medo da dor, não tinha medo de nada, mas nem por isso se pode dizer que fosse valente. Não era valente, não era covarde também.

   Eron era humilde. A feiura faz as pessoas assim. A vida também. A vida humildifica o homem e umidifica a retina. Quanto a disformidade de seu caráter não sei. Eron tinha muito pouco e caráter não creio que fosse algo que tivesse. Eron não tinha nenhum apreço por nada, falava pouco, ouvia pouco, gostava pouco, sorria pouco e não chorava. Eron comia muito, não escrevia e lia mal. Eron se importava pouco, desenhava mal e não cantava. Eron se humilhava muito, permitia muito e assentia sempre.

   Sua solidão de tão densa era líquida, escoria-lhe pelos poros. Em seus ouvidos acumulava-se repetidamente o silêncio. E o silêncio era tudo que tinha... 


Disse-me ele certa vez:
O silêncio é o barulho nu, o silêncio se veste de grave, médio e agudo, o silêncio se veste com o grito da torcida, o silêncio se enfeita com todas as freqüências e vai pra festa, e dança... e brilha. O silêncio se veste dos melhores timbres, se veste do som da vida. se veste da música da banda, se veste do trompete metálico, e das bochechas grandes e suadas dos trompetistas. Se veste do estourar das rolhas ao abandonar os champanhes vagabundos

                                                                                      [nas viradas de ano.

Se veste de fato com todas as frequências. Se veste da sirene da ambulância que carrega o morto que jaz morto. E do sino da igreja que soa pelo mesmo morto. 

“Era o padre. Morreu de tiro.” 


Disse o menino pobre à outro menino não tão pobre.


(E o silêncio se vestiu da voz de ambos os meninos.) 


O silêncio se vestiu também do som do tiro no momento do tiro. E se vestiu também do som do choro no momento do choro. E se vestiu também do miado do gato quando miou sem motivo, ou do grito de minha mãe ao encontrar em seu guarda roupa de infância pobre a mulher negra e machucada que se escondia da próxima facada do marido ciumento.


O silêncio se veste de voz. 

E do som do arroz na panela. 

O silencio se veste dos tons 

E do som do feijão com farinha. 


O silêncio se veste do apito do trem na estação vizinha, e dentro vem um Joaquim, Maria ou Priscilla de Mendonça Schmidt e Albuquerque que sobe para casa de novo, que fica no sopé do morro. Que é quando o silêncio se despe de tudo para ser só silêncio de novo. 


(O silêncio levou tudo que eu havia construído,
 roubou o som da minha voz e me deixou mudo.) 


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Não há coisa pior que um homem gigante, só e triste.
Pois a tristeza é também gigante e a solidão a maior que existe. 

  
    Um Demônio dormiu no meu colo, pousou no meu peito de leve, queimou meu último preconceito, me humilhou em frente aos convidados e vendeu as coisinhas que eu tinha. Um demônio brotou no meu ventre, mas não nasceu após nove meses. Precisou de uma vida inteira para nascer e levou a vida que era minha. Um demônio humanizou meus sentidos fez com que eu me vingasse e pagou as despesas no bar. Um demônio, ainda que feio, me mostrou como era possível ser mais belo, e como era bela a estranheza de não parecer bonito. O demônio era Eron Nicodemus...